quinta-feira, dezembro 21, 2006

A questão do aborto

No próximo dia 11 de Fevereiro realizar-se-á o referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) até às dez semanas. Como é normal, a discussão pública até essa data será relativa a esta temática tão sensível num país como o nosso, onde a Igreja Católica exerce grande influência e onde há uma certa dificuldade, por parte de alguns sectores, de separar conceitos como o de Estado e Religião.
Na Europa, a IVG continua a ser ilegal em Portugal, Polónia, Malta e Irlanda. Nestes países, o aborto clandestino é um autêntico flagelo social, devido ao facto de se criminalizar um acto que, quer gostemos ou não, sempre foi constante na vida humana ao longo de todas es épocas históricas. De acordo com estudos da Associação de Planeamento Familiar (APF), são realizados em Portugal cerca de 20.000 a 40.000 abortos clandestinos por ano, e cerca de 9.000 mulheres abortam em Espanha (legalmente), no mesmo espaço de tempo. Além disso, cerca de 5.000 mulheres são atendidas, por ano, em estabelecimentos hospitalares devido a complicações resultantes de abortos clandestinos. É inegável, portanto, que o aborto clandestino é um caso de saúde pública, na medida em que afecta as condições de saúde de um largo sector da população.
O que se pergunta neste referendo não é se estamos contra ou a favor do acto de interromper uma gravidez, mas sim se estamos a favor da perseguição e prisão das mulheres que o fazem e se achamos que a mulher é um ser "imperfeito" e "irracional" que não sabe decidir sobre a sua própria vida sexual e reprodutiva.
Os defensores do "Não", com a demagogia que lhes é tão própria, dizem-nos que são a favor da "vida". Nós, que defendemos o "Sim", somos a favor da vida em todas as suas dimensões, incluindo a vida das mulheres que morrem devido a abortos realizados precariamente, e somos a favor de uma vida digna para as crianças, dignidade essa que não é provável num caso de maternidade indesejada. Além disso, não há unanimidade na comunidade científica acerca do ínicio da vida e da "pessoa humana", logo, a lei não deve beneficiar qualquer concepção científica que não é unânime. Os apologistas do "Não" dizem-nos, demagogicamente e numa atitude desinformativa, que a vitória do "Sim" significa a "liberalização" do aborto. Tal argumento só pode vir de pessoas ignorantes ou, pior, que querem promover a ignorância entre a população. A vitória do "Sim" significa, pelo contrário, a regulamentação da IVG legalmente realizada e a garantia de uma assistência médica adequada (física e psicológica) à mulher que decida interromper a sua gravidez. Ou seja, realizar uma IVG não será como "ir à farmácia comprar um pacote de pastilhas", esse processo deverá ter sempre o devido acompanhamento médico. E cai assim por terra o argumento da utilização da IVG como método contraceptivo. Os defensores do "Não" dizem-nos que, nos países onde a IVG foi legalizada, o número de abortos subiu drasticamente. Este argumento demonstra uma fraca capacidade de raciocíonio, ou uma clara tentativa de desinformar e manipular a população. Antes da legalização, os abortos efectuados são clandestinos, logo os números não possuem o rigor científico suficiente para estabelecer comparações. Além disso, depois da despenalização
todos os abortos são contabilizados nas estatísticas, por isso é normal que o número ascenda.
A par da despenalização da IVG, deve-se exigir ap governo uma política global de simplificação no acesso aos métodos contraceptivos nos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, a realização de campanhas de planeamento familiar, e a introdução da Educação Sexual nas escolas, de modo a que todos possam decidir de consciência plena sobre a sua vida sexual e reprodutiva. Além destas exigências, deve-se exigir também a obrigatoriedade da realização da IVG no Serviço Nacional de Saúde, de modo a garantir que todas as mulheres, independentemente da sua classe social, possam obter este serviço médico. Esta exigência não está garantida, e o ministro da saúde, Correia de Campos, já fez saber que a IVG será realizada, pelo menos inicialmente, apenas no sector privado. Esta política significa o impedimento de grande parte das mulheres acederem a este serviço, e a continuação da realização de abortos clandestinos. Sócrates já mencionou que a IVG seria realizda no SNS, no entanto dois factos o desmentem: as declarações de Correia de Campos e a política do Governo Sócrates para a saúde. Como é que um governo que encerra hospitais e maternidades e impõe taxas "moderadoras" no SNS nos pode garantir tal coisa? A questão de classe é importante nesta discussão, já que são os trabalhadores os penalizados por estas políticas.